AQUELE 1º DE
ABRIL, EU VIVI
Trajano Jardim - Jornalista Profissional - Professor
Nos
dias que antecederam o 1º de abril (de 1964), a agitação deixava todos tensos.
O comício da Central do Brasil, de 13 de março, criara um misto de confiança e
ao mesmo tempo de preocupação sobre que rumo o País tomaria. Cada setor da
sociedade tinha uma avaliação particular de qual seria o caminho. Boatos
sacudiam os noticiários dos jornais, do rádio e da (ainda)
televisão que estava ainda engatinhado. O
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), de há muito, vinha se reunindo com
regularidade, com o objetivo de avaliar a situação e organizar a resistência ao
golpe que, na opinião de alguns, “estava em marcha”.
Na
sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a maior organização
de trabalhadores da América Latina, o entra e sai era constante. A cada minuto
chegava nova informação sobre a situação. Os dirigentes máximos do CGT, o
portuário Osvaldo Pacheco, os tecelões Clodesmidt Riani, e Hércules Correia estavam em contato
permanente com as altas esferas políticas, com o objetivo de obter informações
sobre o andamento da crise a cada momento.
O CGT convocou uma
reunião de emergência em 29 de março, tendo em vista a avaliação de que as
forças golpistas, que no dia 19 liderara a “Marcha com Deus pela Liberdade”, se
articulavam para derrubar o presidente João Goulart e instituir uma ditadura no
País. Participei dessa reunião como representante dos gráficos do então Estado
da Guanabara. Naquela reunião foi discutida a proposta do então deputado Leonel
Brizola de implantação do Estado de Sítio pelo governo João Goulart. A maioria
das principais lideranças das forças democráticas e progressistas se posicionou
contra tal proposta, endossando a argumentação do líder do PCB, Luis Carlos
Prestes, de que “historicamente o Estado de Sítio sempre foi contra a classe
trabalhadora”. A plenária do CGT decidiu organizar a Greve Geral Nacional em
defesa da democracia que estava seriamente ameaçada, na visão do CGT.
O Comando Geral dos
Trabalhadores, na reunião da noite de 30 de março, avaliou que o golpe era
iminente. Assim, foi aprovada a deflagração da Greve Geral Nacional em 1º de
abril. Naquele momento a ideia era de que só a resistência dos trabalhadores
nas ruas poderia barrar o golpe. Afinal, só na Guanabara o movimento sindical
tinha conseguido mobilizar mais de 100 mil pessoas no comício de 13 de março.
O trabalho de
mobilização foi intenso. O transporte de massa, que naquela época era feito
pelos trens da Central do Brasil e da Leopoldina, foram totalmente paralisados
e impediu que a população viesse para a rua. A Rádio Nacional foi ocupada pelos
funcionários e abriu espaços para que os dirigentes sindicais convocassem os
trabalhadores para as ruas. Fui indicado pela diretoria do sindicato para ir a
Rádio Nacional fazer uma convocação aos trabalhadores gráficos para apoiar a
greve.
Quando deixei a rádio
com alguns companheiros, chegamos ao Sindicato e soubemos que a polícia e o
exército haviam ocupado a Rádio Nacional e prendido os radialistas e
funcionários que estavam no comando da emissora e o presidente Jango tinha
embarcado para Brasília, com o objetivo de organizar a resistência ao golpe.
Ficamos de vigília no
Sindicato esperando alguma orientação sobre mobilização para lutar contra o
golpe. Corriam boatos de que o Almirante Aragão comandante do Corpo de
Fuzileiros Navais iria organizar grupos de voluntários. Na Cinelândia, nós, os militantes
comunistas, vimos que a situação estava sob controle do exército e da polícia.
Algumas dezenas de
pessoas se manifestavam com palavras de ordem “fora Lacerda”, “viva Jango”. Sabia-se
que o prédio da UNE fora incendiado pelo Comando de Caça aos Comunistas e que
em Brasília os militares favoráveis ao golpe de Estado tinham pretensões de
prender o presidente Jango e este embarcara para o Rio Grande do Sul, onde
estaria mais seguro.
Nossas esperanças se
esvaíram na fina chuva daquela fatídica quarta-feira. A movimentação de carros
da polícia era intensa. Naquele momento éramos 5, talvez 6, gráficos militantes
comunistas, desnorteados em pleno centro da cidade do Rio de Janeiro. Um deles,
Francisco Nunes, que era secretário de Base dos gráficos do PCB, o “Velho
Partidão” morava na Piedade, um bairro
de classe média, distante 30 km do centro do Rio.
Começamos a caminhar
pela Avenida Rio Branco vagarosamente fazendo as nossas conjecturas do que
seria o dia seguinte. Como não tínhamos informações do desfecho daquela
situação, a nossa esperança era de que o esquema militar do Jango funcionaria,
a partir do Rio Grande do Sul, onde o comandante do Exército era fiel a João
Goulart. Essa era a nossa esperança, que nos dias que se seguiram mostrou-se
que não passava de esperança. Jango não aceitou o enfrentamento.
Caminhávamos sob a fina
chuva há algumas horas. Não havíamos nos alimentado por todo o dia e não
sentíamos fome nem sede. Francisco Nunes instintivamente seguia rumo a Piedade.
Analisando a situação de cada um de nós, concluímos que o mais visado era eu.
Por este motivo não deveria ir para casa naquela noite. O Nunes aconselhou-me
ir para sua casa. Todos aceitaram a ideia. Os demais companheiros tomaram o
rumo de casa e eu segui com o camarada Francisco Nunes. Chegamos à piedade por
volta das 10,30 horas. Tínhamos saído da Cinelândia às 15 horas. Caminhamos 7
horas e meia, molhados até os ossos.
A nossa preocupação
maior era saber das notícias pela televisão, que naquela época era ainda em
preto e branco. Na telinha, ainda oval, aparecia o governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, com uma metralhadora em cima da bancada, que se apresentava
como o grande líder do movimento golpista. Para nossa decepção, os noticiários
davam conta de que o Congresso, embora o presidente constitucionalmente eleito
estivesse ainda em território nacional, considerou vaga a presidência da
República, destituindo de forma ilegal o mandatário do País legalmente eleito.
Naquela noite, por
motivos óbvios, não pregamos os olhos. As emissoras eram poucas. TV Tupi, Rio,
Excelsior e as rádios. Ficamos navegando
em busca de notícias que pudessem nos dar algum alento. Para nossa decepção as
notícias, tanto nas TVs quanto nas rádios davam conta de que estávamos sendo
derrotados. O golpe se consolidava. Algumas lideranças sindicais já apareciam
como procuradas. Principalmente os dirigentes do Comando Geral dos
Trabalhadores.
O dia amanheceu e só aí
a “ficha caiu”. O que fazer? Naquela época a comunicação não tinha as
facilidades de hoje. Os contatos eram interpessoais e institucionais. Francisco
Nunes e eu resolvemos ir até o centro da cidade - agora de condução - ver como
estava a situação do Sindicato. No prédio onde funcionava a sede fizemos contato
com o Fabrício, que era o nosso companheiro que administrava a entidade. Ele
nos colocou a par da situação e disse que só havia feito contato com Walter
Torres, diretor-tesoureiro do Sindicato.
Walter Torres era de
família religiosa e conservadora, mas era um companheiro leal e solidário. Com
o golpe militar nossas relações entrecruzaram-se de forma muito forte. Sabia-se
que, pelas minhas atividades políticas partidárias, a qualquer momento eu
poderia ser preso e ele poderia ter complicações. Mas Torres resolveu enfrentar
e nós garantimos a continuidade do Sindicato dos Gráficos, enquanto todos os
demais diretores esconderam-se.
Torres tinha um parente
que era padre e era o pároco da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa, na Avenida
Passos, 15, perto da Praça Tiradentes, próximo ao Sindicato. Por 3 meses fizemos
da igreja o nosso local de funcionamento. Ajudávamos a fazer velas e em outros
trabalhos. A poeira baixou e retomamos o Sindicato. Eu voltei para a empresa
onde trabalhava há 7 anos e em 1966, a repressão estava cada vez mais intensa,
e fui demitido por razões óbvias.
Concluí que a minha
vida a partir daquele momento iria virar “de ponta a cabeça”. Não queria
acreditar nas previsões do velho Erasmo, camarada que me filiou ao Partidão,
quando dizia “esse é um golpe para 20 anos”. Infelizmente ele acertou em cheio.
Foram 20 anos, dos quais 7 eu vivi na clandestinidade e por quase 2 estive exilado na saudosa União
Soviética.
Hoje fui reconhecido
como “perseguido político” e recebi as “desculpas do Estado brasileiro”. Um
sofisma que jamais trará de volta milhares de militantes, alguns fraternos
irmãos camaradas que sofreram torturas físicas e psicológicas, por terem como
crime a esperança de construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária.
Deixaram pela estrada da vida seus sonhos, interrompidos pela violência absurda
e cruel, que esperamos ver reparada de fato, sem sofismas. Com a condenação dos
violentadores.
Aquele 1º de abril, eu
vivi e sobrevivi.