segunda-feira, 6 de abril de 2015

AQUELE 1º DE ABRIL, EU VIVI

Trajano Jardim -  Jornalista Profissional - Professor

Nos dias que antecederam o 1º de abril (de 1964), a agitação deixava todos tensos. O comício da Central do Brasil, de 13 de março, criara um misto de confiança e ao mesmo tempo de preocupação sobre que rumo o País tomaria. Cada setor da sociedade tinha uma avaliação particular de qual seria o caminho. Boatos sacudiam os noticiários dos jornais, do rádio e da (ainda) televisão que estava ainda engatinhado.  O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), de há muito, vinha se reunindo com regularidade, com o objetivo de avaliar a situação e organizar a resistência ao golpe que, na opinião de alguns, “estava em marcha”.
 
Na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a maior organização de trabalhadores da América Latina, o entra e sai era constante. A cada minuto chegava nova informação sobre a situação. Os dirigentes máximos do CGT, o portuário Osvaldo Pacheco, os tecelões Clodesmidt Riani, e Hércules Correia estavam em contato permanente com as altas esferas políticas, com o objetivo de obter informações sobre o andamento da crise a cada momento.

O CGT convocou uma reunião de emergência em 29 de março, tendo em vista a avaliação de que as forças golpistas, que no dia 19 liderara a “Marcha com Deus pela Liberdade”, se articulavam para derrubar o presidente João Goulart e instituir uma ditadura no País. Participei dessa reunião como representante dos gráficos do então Estado da Guanabara. Naquela reunião foi discutida a proposta do então deputado Leonel Brizola de implantação do Estado de Sítio pelo governo João Goulart. A maioria das principais lideranças das forças democráticas e progressistas se posicionou contra tal proposta, endossando a argumentação do líder do PCB, Luis Carlos Prestes, de que “historicamente o Estado de Sítio sempre foi contra a classe trabalhadora”. A plenária do CGT decidiu organizar a Greve Geral Nacional em defesa da democracia que estava seriamente ameaçada, na visão do CGT.

O Comando Geral dos Trabalhadores, na reunião da noite de 30 de março, avaliou que o golpe era iminente. Assim, foi aprovada a deflagração da Greve Geral Nacional em 1º de abril. Naquele momento a ideia era de que só a resistência dos trabalhadores nas ruas poderia barrar o golpe. Afinal, só na Guanabara o movimento sindical tinha conseguido mobilizar mais de 100 mil pessoas no comício de 13 de março.
O trabalho de mobilização foi intenso. O transporte de massa, que naquela época era feito pelos trens da Central do Brasil e da Leopoldina, foram totalmente paralisados e impediu que a população viesse para a rua. A Rádio Nacional foi ocupada pelos funcionários e abriu espaços para que os dirigentes sindicais convocassem os trabalhadores para as ruas. Fui indicado pela diretoria do sindicato para ir a Rádio Nacional fazer uma convocação aos trabalhadores gráficos para apoiar a greve.

Quando deixei a rádio com alguns companheiros, chegamos ao Sindicato e soubemos que a polícia e o exército haviam ocupado a Rádio Nacional e prendido os radialistas e funcionários que estavam no comando da emissora e o presidente Jango tinha embarcado para Brasília, com o objetivo de organizar a resistência ao golpe.

Ficamos de vigília no Sindicato esperando alguma orientação sobre mobilização para lutar contra o golpe. Corriam boatos de que o Almirante Aragão comandante do Corpo de Fuzileiros Navais iria organizar grupos de voluntários. Na Cinelândia, nós, os militantes comunistas, vimos que a situação estava sob controle do exército e da polícia.

Algumas dezenas de pessoas se manifestavam com palavras de ordem “fora Lacerda”, “viva Jango”. Sabia-se que o prédio da UNE fora incendiado pelo Comando de Caça aos Comunistas e que em Brasília os militares favoráveis ao golpe de Estado tinham pretensões de prender o presidente Jango e este embarcara para o Rio Grande do Sul, onde estaria mais seguro.

Nossas esperanças se esvaíram na fina chuva daquela fatídica quarta-feira. A movimentação de carros da polícia era intensa. Naquele momento éramos 5, talvez 6, gráficos militantes comunistas, desnorteados em pleno centro da cidade do Rio de Janeiro. Um deles, Francisco Nunes, que era secretário de Base dos gráficos do PCB, o “Velho Partidão”  morava na Piedade, um bairro de classe média, distante 30 km do centro do Rio.

Começamos a caminhar pela Avenida Rio Branco vagarosamente fazendo as nossas conjecturas do que seria o dia seguinte. Como não tínhamos informações do desfecho daquela situação, a nossa esperança era de que o esquema militar do Jango funcionaria, a partir do Rio Grande do Sul, onde o comandante do Exército era fiel a João Goulart. Essa era a nossa esperança, que nos dias que se seguiram mostrou-se que não passava de esperança. Jango não aceitou o enfrentamento.

Caminhávamos sob a fina chuva há algumas horas. Não havíamos nos alimentado por todo o dia e não sentíamos fome nem sede. Francisco Nunes instintivamente seguia rumo a Piedade. Analisando a situação de cada um de nós, concluímos que o mais visado era eu. Por este motivo não deveria ir para casa naquela noite. O Nunes aconselhou-me ir para sua casa. Todos aceitaram a ideia. Os demais companheiros tomaram o rumo de casa e eu segui com o camarada Francisco Nunes. Chegamos à piedade por volta das 10,30 horas. Tínhamos saído da Cinelândia às 15 horas. Caminhamos 7 horas e meia, molhados até os ossos.
A nossa preocupação maior era saber das notícias pela televisão, que naquela época era ainda em preto e branco. Na telinha, ainda oval, aparecia o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, com uma metralhadora em cima da bancada, que se apresentava como o grande líder do movimento golpista. Para nossa decepção, os noticiários davam conta de que o Congresso, embora o presidente constitucionalmente eleito estivesse ainda em território nacional, considerou vaga a presidência da República, destituindo de forma ilegal o mandatário do País legalmente eleito.

Naquela noite, por motivos óbvios, não pregamos os olhos. As emissoras eram poucas. TV Tupi, Rio, Excelsior e as rádios.  Ficamos navegando em busca de notícias que pudessem nos dar algum alento. Para nossa decepção as notícias, tanto nas TVs quanto nas rádios davam conta de que estávamos sendo derrotados. O golpe se consolidava. Algumas lideranças sindicais já apareciam como procuradas. Principalmente os dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores.

O dia amanheceu e só aí a “ficha caiu”. O que fazer? Naquela época a comunicação não tinha as facilidades de hoje. Os contatos eram interpessoais e institucionais. Francisco Nunes e eu resolvemos ir até o centro da cidade - agora de condução - ver como estava a situação do Sindicato. No prédio onde funcionava a sede fizemos contato com o Fabrício, que era o nosso companheiro que administrava a entidade. Ele nos colocou a par da situação e disse que só havia feito contato com Walter Torres, diretor-tesoureiro do Sindicato.

Walter Torres era de família religiosa e conservadora, mas era um companheiro leal e solidário. Com o golpe militar nossas relações entrecruzaram-se de forma muito forte. Sabia-se que, pelas minhas atividades políticas partidárias, a qualquer momento eu poderia ser preso e ele poderia ter complicações. Mas Torres resolveu enfrentar e nós garantimos a continuidade do Sindicato dos Gráficos, enquanto todos os demais diretores esconderam-se.

Torres tinha um parente que era padre e era o pároco da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa, na Avenida Passos, 15, perto da Praça Tiradentes, próximo ao Sindicato. Por 3 meses fizemos da igreja o nosso local de funcionamento. Ajudávamos a fazer velas e em outros trabalhos. A poeira baixou e retomamos o Sindicato. Eu voltei para a empresa onde trabalhava há 7 anos e em 1966, a repressão estava cada vez mais intensa, e fui demitido por razões óbvias.

Concluí que a minha vida a partir daquele momento iria virar “de ponta a cabeça”. Não queria acreditar nas previsões do velho Erasmo, camarada que me filiou ao Partidão, quando dizia “esse é um golpe para 20 anos”. Infelizmente ele acertou em cheio. Foram 20 anos, dos quais 7 eu vivi na clandestinidade  e por quase 2 estive exilado na saudosa União Soviética.

Hoje fui reconhecido como “perseguido político” e recebi as “desculpas do Estado brasileiro”. Um sofisma que jamais trará de volta milhares de militantes, alguns fraternos irmãos camaradas que sofreram torturas físicas e psicológicas, por terem como crime a esperança de construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Deixaram pela estrada da vida seus sonhos, interrompidos pela violência absurda e cruel, que esperamos ver reparada de fato, sem sofismas. Com a condenação dos violentadores.

Aquele 1º de abril, eu vivi e sobrevivi.



 

  



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