O
artigo abaixo foi escrito pelo titular da Secretaria de Imprensa e Comunicação
do Sinproep-DF, Trajano Jardim, integrante da Comissão da Verdade dos
Trabalhadores em Educação do Setor Privado de Ensino, instaurada pela Contee na
última sexta-feira (28). É um testemunho vivo de que o que aconteceu há 50
anos, com o golpe de 1º de abril de 1964, não pode jamais se repetir.
Trajano
Jardim*
Nos dias
que antecederam o 1º de abril (de 1964), a agitação deixava todos tensos. O
comício da Central do Brasil, de 13 de março, criara um misto de confiança e ao
mesmo tempo de preocupação sobre que rumo o País tomaria. Cada setor da
sociedade tinha uma avaliação particular de qual seria o caminho. Boatos
sacudiam os noticiários dos jornais, do rádio e da televisão que ainda
engatinhava. O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), de há muito, vinha
se reunindo com regularidade, com o objetivo de avaliar a situação e organizar
a resistência ao golpe que, na opinião de alguns, “estava em marcha”.
Na sede
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a maior
organização laboral da América Latina, o entra e sai era constante. A cada
minuto chegava nova informação sobre a situação. Os dirigentes máximos do CGT,
o portuário Osvaldo Pacheco, os tecelões Clodesmidt Riani, e Hércules Correia
estavam em contato permanente com as altas esferas políticas, com o objetivo de
se informar sobre o andamento da crise.
O CGT
convocou uma reunião de emergência em 29 de março, para avaliar a correlação de
forças em relação as forças golpistas, que no dia 19 liderara a “Marcha com
Deus pela Liberdade” e se articulavam para derrubar o presidente João Goulart e
instituir uma ditadura no País. Participei dessa reunião como representante dos
gráficos do então Estado da Guanabara. Naquela reunião foi discutida a proposta
do então deputado Leonel Brizola de implantação do Estado de Sítio pelo governo
João Goulart. A maioria das principais lideranças das forças democráticas e
progressistas se posicionou contra tal proposta, endossando a argumentação do
líder do PCB, Luis Carlos Prestes, de que “historicamente o Estado de Sítio sempre
foi contra a classe trabalhadora”. A plenária do CGT decidiu organizar a Greve
Geral Nacional em defesa da democracia que estava seriamente ameaçada.
O Comando
Geral dos Trabalhadores, na reunião da noite de 30 de março, avaliou que o
golpe era iminente. Assim, foi aprovada a deflagração da Greve Geral Nacional
em 1º de abril. Na nota dirigida à Nação, o CGT afirmava que “só a resistência
dos trabalhadores nas ruas poderia barrar o golpe”. Afinal, só na Guanabara o
movimento sindical tinha conseguido mobilizar mais de 100 mil pessoas no
comício de 13 de março.
O
trabalho de mobilização foi intenso. O transporte de massa, que naquela época
era feito pelos trens da Central do Brasil e da Leopoldina, foram totalmente
paralisados e impediu que a população viesse para a rua. A Rádio Nacional foi
ocupada pelos funcionários e abriu espaços para os dirigentes sindicais
convocarem os trabalhadores de suas categorias para as ruas. Fui indicado pela
diretoria do Sindicato dos Gráficos para ir a rádio fazer uma conclamação aos
trabalhadores gráficos para apoiar a greve.
Deixei a
rádio com alguns companheiros e quando chegamos ao Sindicato soubemos que a
polícia e o exército haviam ocupado a Rádio Nacional e prendido os radialistas
e funcionários que estavam no comando da emissora e o presidente Jango tinha
embarcado para Brasília, com o objetivo de organizar a resistência ao golpe.
Ficamos
de vigília no Sindicato esperando alguma orientação para lutar contra o golpe.
Corriam boatos de que o Almirante Aragão comandante do Corpo de Fuzileiros
Navais iria organizar grupos de voluntários. Na Cinelândia, nós, os militantes
comunistas, vimos que a situação estava sob o controle do exército e da
polícia. Algumas dezenas de pessoas se manifestavam com palavras de ordem de
“fora Lacerda”, “viva Jango”. Sabia-se que o prédio da UNE fora incendiado pelo
Comando de Caça aos Comunistas e que em Brasília os militares favoráveis ao
golpe de Estado tinham pretensões de prender o presidente Jango e este, por
segurança, embarcara para o Rio Grande do Sul.
Nossas
esperanças se esvaíram na fina chuva daquela fatídica quarta-feira. A
movimentação de carros da polícia era intensa. Naquele momento éramos 5, talvez
6, gráficos militantes comunistas, desnorteados em pleno centro da cidade do
Rio de Janeiro. Um deles, Francisco Nunes, que era secretário de base dos
gráficos do PCB, o “Velho Partidão” morava na Piedade, um bairro de classe
média, distante 30 km do centro do Rio.
Começamos
a caminhar pela Avenida Rio Branco vagarosamente fazendo as nossas conjecturas
do que seria o dia seguinte. Como não tínhamos informações do desfecho daquela
situação, a nossa expectativa era de que o esquema militar do Jango
funcionaria, a partir do Rio Grande do Sul, onde o comandante do Exército era
fiel a João Goulart. Essa era a nossa esperança, que nos dias que se seguiram
mostrou-se que não passava de esperança. Jango não aceitou o enfrentamento.
Hoje temos conhecimento de fora aconselhado pelo ministro das Relações
Exteriores Santiago Dantas.
Caminhávamos
sob a fina chuva há algumas horas. Não havíamos nos alimentado por todo o dia e
não sentíamos fome nem sede. Francisco Nunes instintivamente seguia rumo a
Piedade. Analisando a situação de cada um de nós, concluímos que o mais visado
era eu. Por este motivo não deveria ir para minha casa naquela noite. O Nunes
aconselhou-me ir com ele para a sua. Todos aceitaram a ideia. Os demais
companheiros tomaram seu rumo e eu segui com o camarada Francisco Nunes.
Chegamos à piedade por volta das 10,30 horas. Tínhamos saído da Cinelândia às
15 horas. Caminhamos 7 horas e meia e estávamos molhados até os ossos.
A nossa
preocupação maior era saber das notícias pela televisão, que naquela época era
em preto e branco. Na telinha, ainda oval, aparecia o governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, (um dos líderes da UDN, partido que era o esteio civil do
movimento golpista), com uma metralhadora em cima da bancada, se apresentava
como o grande responsável de ter livrado o Brasil de ser dominado pelos
comunistas. Para nossa decepção, os noticiários davam conta de que o Congresso,
embora o presidente constitucionalmente eleito estivesse ainda em território
nacional, considerou vaga a presidência da República, destituindo de forma
ilegal o mandatário do País legalmente e colocado na presidência o deputado
Ranieri Mazili.
Naquela
noite, por motivos óbvios, não pregamos os olhos. As emissoras eram poucas. TV
Tupi, Rio, Excelsior e as rádios. Ficamos freneticamente girando os
botões da televisão e do rádio, em busca de notícias que pudessem nos dar algum
alento. Para nossa decepção todas, tanto nas TVs quanto nas rádios davam conta
de que estávamos sendo derrotados. O golpe se consolidava. Algumas lideranças
sindicais já apareciam como procuradas. Principalmente os dirigentes do Comando
Geral dos Trabalhadores.
O dia
amanheceu e só aí a “ficha caiu”. E agora, o que fazer? (voltávamos a Lenin, na
derrota de 1905). Naquela época a comunicação não tinha as facilidades de hoje.
Os contatos eram interpessoais e institucionais. Francisco Nunes e eu
resolvemos ir até o centro da cidade – agora de condução – ver como estava a
situação do Sindicato. No prédio onde funcionava a sede fizemos contato com o
Fabrício, que era o nosso companheiro que administrava a entidade. Ele nos
colocou a par da situação e disse que só havia feito contato com Walter Torres,
diretor-tesoureiro do Sindicato.
Walter
Torres era de família religiosa e conservadora, mas era um companheiro leal e
solidário. Com o golpe militar nossas relações estreitaram-se de forma muito
forte. Ele sabia que, pelas minhas atividades políticas partidárias, a qualquer
momento eu poderia ser preso e ele, junto comigo, por certo, iria ter
complicações. Mas Torres resolveu enfrentar e nós garantimos a continuidade do
Sindicato dos Gráficos, enquanto todos os demais diretores esconderam-se.
Torres
tinha um parente que era o pároco da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa, na
Avenida Passos, 15, perto da Praça Tiradentes, próximo ao Sindicato. Por 3
meses fizemos da igreja o nosso local de funcionamento. Ajudávamos a fazer
velas e em outros trabalhos. A poeira baixou e retornamos ao Sindicato. Eu
voltei para a empresa onde trabalhava há 7 anos e em 1966, a com a repressão
cada vez mais intensa, e fui demitido por razões óbvias.
Concluí
que a minha vida a partir daquele momento iria virar “de ponta a cabeça”. Não
queria acreditar nas previsões do velho Erasmo, camarada que me filiou ao
Partidão, quando dizia “esse é um golpe para 20 anos”. Infelizmente ele acertou
em cheio. Foram 20 anos, dos quais 7 eu vivi na clandestinidade e por
quase 2 estive exilado na saudosa União Soviética.
Hoje fui
reconhecido como “perseguido político” e recebi as “desculpas do Estado
brasileiro”. Um sofisma que jamais trará de volta milhares de militantes
mortos, alguns fraternos irmãos camaradas que sofreram torturas físicas e
psicológicas, por terem como crime a esperança de construir uma sociedade
justa, fraterna e igualitária. Deixaram pela estrada da vida seus sonhos,
interrompidos pela violência absurda e cruel, que esperamos ver reparada de
fato, sem sofismas. Com a condenação dos violentadores.
Aquele 1º
de abril, eu vivi e sobrevivi.
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